Terceiro Ato

Tudo começa quando as caixas descem do armário, recém acordadas da poeira de um longo ano. Toda uma sinfonia de cheiros, gostos, imagens e texturas encontram na memória a ignição perfeita para a chamada reação em cadeia de natal. Virginianamente organizados, os enfeites da "festa dos presentes" vão aparecendo um por um compondo o indigesto terceiro ato desta ópera de 365 movimentos. Erguem-se as árvores, acendem-se as luzes e tudo adquire tons coca-cola. Está armado o cenário.

Entro em cena e dá pra sentir na ponta dos meus dedos o ar de fadiga da minha platéia prevendo a lamúria a seguir. Vestindo preto sobre um banquinho de cerejeira, dou início, quase que como a martelada dos magistrados, ao mesmo monólogo trágico e sutilmente otimista de todos os anos. Deleito-me sobre uma longa retrospectiva chorosa de metas não alcançadas, felicidades interrompidas, calamidades ou medos patológicos. Entre uma lástima e outra as vezes acerto uma gargalhada doentia vinda dos ecos da piada alheia que me serve apenas para pontuar com brilhantismo o ar abafado de insanidade depressiva do solo-monólogo que vocalizo. A platéia, meio assustada meio rancorosa, avivam os olhos antes cerrados num semi estado alfa tentando compreender o motivo do estardalhaço. O fazem bem a tempo de perceber o fantasma com quem protagonizava já há algum um tempo. Meio incrédulos da coincidencia, visto que é uma opera e temos um fantasma, empertigam-se na poltrona interessados. Sinto que recuperei o fio da meada.
Discorro sobre como fui tragicamente ceifado, privado de braços maternos e de como isso engasgou o cano de escape de mim. Explico que, engasgado, acumulei e sobrecarreguei sentimentos que pesaram mais tarde, ou nos ultimos tempos. De repente, cansado de carregar nos ombros o peso da eloquencia, atirei-o no caminho e estiquei com prazer a coluna martirizada. Livre de grandes responsabilidades, deixei que tudo ficasse a encargo do acaso. Mas ninguém vive sem responsabilizar-se pela própria vida, e a vida é suficientemente densa para ser atirada de lado. É nesses momentos cruciais do continuum que pensava quão diferente tudo poderia ser, caso o ser ao meu lado não se enquadrasse como manifestação do quarto estado da matéria. Então o palco alaga-se nas lágrimas não choradas do caminho desviado, da não correspondência entre a antiga pretensão e a atual realidade. E nesta hora em que a pele dos pés descalços engilhesse sob o sal e a água, chegamos ao ponto chave que abrirá todas as portas. O engolir em seco da platéia em consonancia com a respiração aprisionada me satisfaz. Eis aqui algo inédito às retinas viciadas.
A nostalgia remanesce do completo abandono do verdadeiro cerne da questão. Não se trata de carências, de medos, de infelicidades. Trata-se de reconhecer-me em mim mesmo. Não se pode ser o que sua natureza não suporta ou pressupõe. Negar-se é o problema. Tenho me negado numa tentativa desesperada de retidão, sem transtornos, e de facilidades. Mas tenho pagado o preço da superficialidade, do vazio e da ausencia de significados consistentes. Mas como se ressurge dentro de si próprio? Como se não é o que é? Sinto que preciso voltar no tempo, recuperar memórias e valores para ressignificar-me. Reconstruir-me. Ou melhor, conhecer-me a mim mesmo.
Isso Sócrates disse há muito tempo, eu deveria saber.
A platéia está a plenas ouvidos.

(sem título)

O que me assusta... é que a vida está passando.

Réquiem

Eu não sei se Deus tem alguma influência sobre a vida dos seres irracionais. Não sei se há um paraíso de alívio para aqueles que morrem e é até meio estranho imaginar um paraíso para animais. É que os cães, e o meu em especial, são tão cheios de sentimento quando olham, quando esfregam-se na perna buscando carinho, ou quando latem em reclamação, que sinto que ali dentro deles sobrevive uma alma.
Como eu poderia dizer que é irracional o meu cachorro ter chorado durante a noite com saudade de sua mãe, ainda quando era filhote? Que é irracional desistir de comer e amuar-se num canto somente pela ausência demorada de seu dono?
Isso não é irracionalidade e nem muito menos é racional, porque é sentimento.
É injusto pensar que seres dotados de sentimentos como estes estejam relegados ao descaso de Deus e da vida.
Renzo... Era esse o nome que costumava ser o do meu cachorro.
Renzo passou a fazer parte da família num momento em que um de seus integrantes partia pra sempre. Não digo que ele amenizou nenhuma dor, porque não existe amenidade em perder um ente tão querido como uma mãe. É uma perda dura e ressecada pelo sal das lágrimas.
Mas Renzo, de certo, tornou-se a calma e apoio necessário àqueles momentos fadados de desespero. Acariciar seu pelo tornou-se terapia e cuidar de sua vida transformou-se numa missão muito bem-vinda.
Vê-lo crescer com vigor e juventude foi constatar também a suavização da perda. A passagem de sua vida inegavelmente marca, na minha e de toda a família, o transcorrer do tempo que com alguma maestria foi capaz de tornar cicatriz o que era ferida aberta.
Com uma personalidade leve e brincalhona, que é peculiar aos labradores, fez muitos dos nossos dias mais felizes. Seus latidos pontuais as seis da manha acordava o dono não somente do sono mas também da vida adormecida. Suas necessidades de sair para a rua, empurrava para o mundo as pessoas que o guiavam. Sua presença no portão de entrada vindo receber quem chegava, soube fazer esquecer por um tempo quem estava faltando no sofá da casa.
Irmão e filho, Renzo incubiu-se sem saber da tarefa de preencher o grande vazio que habitava nossas mentes e almas. Não posso dizer que preencheu de todo porque esse vazio é perene, mas de certo tornou menos profundo.
Renzo falece nesse dia com muito pouco do que foi em sua glória. Estava magro, mal andava e eu quase não podia encontrá-lo quando o encarava nos olhos. Ele somente chorava e latia numa batalha que não conseguia compreender mas que era a batalha travada entre a vida e morte. E vê-lo assim foi também reviver os dias trágicos que precederam a ida da nossa alma gemea. Vê-lo sem andar em busca de asas, é como relembrar o brado que conclamava o alçar vôo.
É claro, muito óbvio, que Deus rege todas as criaturas. Seus designios trouxeram Renzo para nossa família quando haviamos sofrido perda. E agora que estes mesmos designios o carregam para longe, devo compreender que isso só pode significar uma mensagem do próprio Deus. O que acontece é que o tempo passou exatamente como deveria passar e agora tudo deve voltar ao seu eixo.
Com missão cumprida damos adeus a este que fez parte da família por todos esses anos. Com um sentimento de negligência por te-lo as vezes esquecido num canto e até de ter me irritado algumas vezes com este ser que me foi precioso, me despeço com muito pesar e tristeza do maior e mais nobre animal que conheci.

Adeus meu querido amigo, obrigado por tudo.

(título)

Não se pode dizer que eu sou um garoto normal, que anda com gente normal e que deseja o que todo mundo deseja. A carater de constatação inicial: eu sou verde.
É isso aí. Mas apague logo esse alienígena que a sua mente sem originalidade deve ter criado. Eu sou normal igual a você. Exceto que, bem... como eu disse, eu sou verde.
Mas é um tom bonito. Não é um verde forte como de uma planta. No escuro você nem diria que eu sou verde. Quer dizer, se eu não tiver comido batatas no almoço. É que... eu sei que isso vai soar mais estranho do que ser verde, mas eu fico incandescente quando como batatas. É algum tipo de reação química ou sei lá o que. Minha mãe tinha comido batatas no dia em que me deu a luz. Bom, o que eu posso dizer... Ela realmente deu a luz.
Espero que você não esteja rindo disso que é trágico e nem um pouco cômico. Passei toda minha vida sendo ridicularizado por causa da minha cor. Na escola ninguém chegava perto de mim achando que de alguma forma iam pegar a minha "doença". Ser verde não é uma doença, a gente simplesmente nasce assim.
Quer dizer, eu nasci assim.
As vezes eu fico pensando. Tem gente que é rosa, branca, amarela, até marrom...
Qual o problema em ser verde?
Houve um tempo em que eu queria ser normal, igual a todo mundo. Hoje eu sou diferente. E vendo-me aqui na iminencia de fazer o que deve ser feito, esboço essas palavras que talvez sejam minhas últimas. Escrevo aqui para que fique registrado, para que minha história seja contada e para que, quem sabe, sirva de inspiração para todos aqueles que são marginalizados do mundo.
Eu sou verde e, parando bem para pensar, agora isso faz todo sentido.


(aos leitores deste blog, a licença para continuar...)



Baco... és Baco!
Tu que germinaste em ventre condenado
Que não suportou o peso da ira de Juno
E o extase da luz de Jupiter

Foste tu que nasceste da coxa deste
A quem os gregos chamavam de Zeus
Tu, que és filho da mortal Sémele
Criado no berço das ninfas e das horas

Cresceste sob a sombra
Cercado dos galhos viçosos de vides
Descobriste aqueles maduros cachos de uva
Que com tuas mãos tenazes extraiste o suco

Oh Baco! Desde tua luz foste amaldiçoado
Sobre ti repousava infalível os olhos de Juno
Que ao ver-te aprender o fabrico do vinho
Te condenou à loucura, deixando-te a vagar

Mas as curvas do tempo te salvaram
E foste encontrado por Cibele, mãe de Jupiter
Que te curou do mal que te abatia
E deixou-te a repousar em límpidos campos

Mas se as mulheres não esquecem a traição
A rainha do Olimpo fez dela o seu sol
E mais uma vez te atentou
Fazendo-te prisioneiro de piratas sem escrúpulo

Ora, mas tu és Baco!
Os Deuses te socorreram
Transformaram teus captores em delfins
E tu fizeste florecer a uva perto do mar

Ah! Inebriam-se os homens em teu líquido
Cultua-se teu fruto nos campos
E tua imortalidade é presenciada
Pois morres no inverno e vens renascer na primavera...

Ah Baco! Juno não toca os protegidos de Jupiter
Regozija-te em tua corte de vinho e luxo
Embriaga-te no prazer eterno de Ariadne
Aquela que desposaste na ilha de Naxos

Derrama sobre os homens o vinho
Faz-te sentir na alegria do ébrios
Faz-te escutar nos gemidos dos orgiáticos
e na voz dos bardos que não dormem

Baco...és Baco!
Ouço-te em todos os bacanais
Sinto teu toque leve e quente
A lascivia dos teus lábios

E tudo isso eu vejo, sinto e escuto
Baco, oh Baco!
Somente quando bebo teu vinho
E inebrio-me em teus salões!

sinestesia

Oceano. Os pés enterrados na areia fria... Vento balançando o cabelo.
Solidão.
Há alguns minutos atrás um barco surgiu deslizando na água. Atravessa imperceptivel, o mar. Ele pode me ouvir? Será que ele me leva?
O som é calmo. As ondas reverberam nas paredes negras do universo e eu as escuto. Eu vejo o sol tocar seus dedos sobre o mar para sorrir o azul do céu.
Uma gaivota joga conversa fora ali do lado. Voa fácil zombando da minha falta de asas.
Estiro a lingua pra ela.
De repente começou a surgir gente por aqui. Duas crianças apareceram longe, uma com bola de futebol embaixo do braço. Atras de mim escuto um grupo de jovens fazendo algazarra.
Me levanto.
Tiro a camiseta, coloco areia em cima dela para não voar.
Ando para o mar.
A água está gelada, meus músculos reclamam. Entro sem muito barulho, sem muito movimento. Não há ondas agora.
Mergulho a cabeça. Aqui é tão seguro. Escuto... Um ruído que não é barulho, não é som. É a engrenagem do mundo.
Volto a superfície e reconheço sons que não havia percebido. Um carro de som na avenida muito longe toca uma música qualquer. Viro-me de costas para o oceano. Lá estão os prédios. Vejo o meu logo ali na frente. É grande e sujo.
Faço ondas com a mão e rodopio as vezes como uma criança dentro d'água.
Umas ondas pequenas movem meus braços soltos.
Nado para o fundo. É mais gelado aqui.
Meus pés não tocam o chão. Estou voando no mar.
Boio.
Deixo que a correnteza me carregue e o sol me aqueça. A água entra no meu ouvido.
Adormeço.
Acordo num susto, mergulho o corpo na água. Sinto frio.
Não vejo a praia, não vejo ninguém.
Me desespero.
Nado a esmo, sem saber pra onde estou indo e sem tampoucou chegar a qualquer lugar.
Tento entender.
Será que é aqui que chego ao fim?
Será que é aqui, impregnado de oceano, onde entregarei a inércia do meu corpo a este mundo que me foi adverso?
Ora que seja.
Sobrevivi à vida, de certo estarei vivo depois de morto.
Boio.
A correnteza me carrega, afundando minha vida nos seus braços.
E aqui nesta cama azul onde minha mente cansada de pensar descarrega seus últimos impulsos e meu corpo treme perante a súbita constatação de que enfim minha hora chegou ... eu me permito.
Permito-me olhar sem medo para a luz intensa do sol.
Ela queima o filme da minha vida. Todas as fotos, todos os momentos. Todos rebobinados e queimados. Alguns que nunca cheguei a revelar.
Queima meus olhos e abre as portas para minha alma aprisionada alçar vôo.
Vejo a gaivota.
Ela acente com o bico.
Migramos juntos para as terras mornas onde há luz, onde há paz.
E tudo, enfim...

é silêncio.

Metodologia Científica I

Acho que durante nossas vidas acontecimentos que valham a pena ser ditos, no sentido de acrescentar às pessoas, é uma coisa que contamos a dedo. Sempre empenhados em objetivos pouco relevantes para nosso crescimento como seres humanos acabamos percorrendo um caminho de evolução muito lento, marcado por uns raros eventos de grande significado.
Mas se existe algo assim em minha vida, certamente tem a ver com a morte da minha mãe. Acho que descrever como todo o processo culminou no fatídico 28 de Março do ano de 2002 não é exatamente importante. Quando se perde uma pessoa, por incrível que possa parecer, o pior não é a morte em si. A grande dificuldade de uma perda, em especial a de uma mãe, é o grande caos no qual sua vida se transforma logo após.
Eis a conjuntura: cinco filhos dependentes e um pai cuja voz eu pouco tinha ouvido durante minha vida até aquele momento. Minha mãe sempre foi naturalmente a grande mediadora do lar e, portanto, o equilíbrio. Quando ela morreu fomos obrigados a ser auto-suficientes. Cada um de nós estava abalado demais para lidar com os problemas uns dos outros, até porque não sabíamos direito nem como lidar com os nossos. Em outras palavras, éramos todos filhotes de pássaro atirados para fora do ninho sem nenhuma idéia de como voar.
E lá, bem no meio dessa queda livre, estava eu nos primeiros dias da minha sétima série, no auge de um conflito interno e sendo obrigado a lidar com situações muito maiores que um garoto de 13 anos. Tinha duas opções: enlouquecer ou enfrentar tudo de uma vez. Enfrentei. Chorei demais, errei demais e também perdi demais. Fui e sou um adolescente com uma mentalidade velha demais para a minha idade porque fui forçado a amadurecer cedo demais. Penso em casamento, quando deveria estar pegando adoidado por aí; penso em como retardar o tempo, quando não deveria nem saber o que é relógio; e penso em como seria ter uma mãe, quando os outros sabem exatamente como é.
É interessante como a vida sempre arranja uma forma de conseguir o que ela quer, mesmo desse jeito mais difícil. Mas é tudo uma questão de perspectiva. Posso parecer frio por pensar assim, mas se minha mãe não tivesse partido não seria a pessoa mais forte e melhor que sou hoje. Não fosse isso, ainda existisse um abismo entre eu e meu pai; eu não soubesse que a felicidade não é um sentimento que surge quando pedimos, mas um estado que alcançamos quando realmente queremos e buscamos. Talvez nunca chegasse a descobrir como superar uma das maiores perdas que alguém pode enfrentar, e saber que a morte é somente uma etapa do caminho. Não seria quem sou hoje e não estaria neste lugar que estou e agradeço por estar.
Sinto sim a ausência de uma mãe. Mas eu aprendi que durante nossa jornada invariavelmente sofremos muitas perdas. Todos os dias somos desfalcados de alguma forma. Seja o tempo que arranca um dia da sua vida, as chaves que você nunca irá encontrar, ou alguém. O que realmente importa é o que você faz quando perde. O que importa é se você permanece na eterna procura do que nunca achará ou se aceita, solene, a perda.
E aqui vai a dica: aceite. Porque quando aceitamos automaticamente reconhecemos que nunca estivemos destinados a possuir. E isto é o primeiro passo para libertar-se, superar, e deixar que a vida lhe dê novos ganhos. Acho que isso é uma coisa que vale a pena ser dita.