Réquiem

Eu não sei se Deus tem alguma influência sobre a vida dos seres irracionais. Não sei se há um paraíso de alívio para aqueles que morrem e é até meio estranho imaginar um paraíso para animais. É que os cães, e o meu em especial, são tão cheios de sentimento quando olham, quando esfregam-se na perna buscando carinho, ou quando latem em reclamação, que sinto que ali dentro deles sobrevive uma alma.
Como eu poderia dizer que é irracional o meu cachorro ter chorado durante a noite com saudade de sua mãe, ainda quando era filhote? Que é irracional desistir de comer e amuar-se num canto somente pela ausência demorada de seu dono?
Isso não é irracionalidade e nem muito menos é racional, porque é sentimento.
É injusto pensar que seres dotados de sentimentos como estes estejam relegados ao descaso de Deus e da vida.
Renzo... Era esse o nome que costumava ser o do meu cachorro.
Renzo passou a fazer parte da família num momento em que um de seus integrantes partia pra sempre. Não digo que ele amenizou nenhuma dor, porque não existe amenidade em perder um ente tão querido como uma mãe. É uma perda dura e ressecada pelo sal das lágrimas.
Mas Renzo, de certo, tornou-se a calma e apoio necessário àqueles momentos fadados de desespero. Acariciar seu pelo tornou-se terapia e cuidar de sua vida transformou-se numa missão muito bem-vinda.
Vê-lo crescer com vigor e juventude foi constatar também a suavização da perda. A passagem de sua vida inegavelmente marca, na minha e de toda a família, o transcorrer do tempo que com alguma maestria foi capaz de tornar cicatriz o que era ferida aberta.
Com uma personalidade leve e brincalhona, que é peculiar aos labradores, fez muitos dos nossos dias mais felizes. Seus latidos pontuais as seis da manha acordava o dono não somente do sono mas também da vida adormecida. Suas necessidades de sair para a rua, empurrava para o mundo as pessoas que o guiavam. Sua presença no portão de entrada vindo receber quem chegava, soube fazer esquecer por um tempo quem estava faltando no sofá da casa.
Irmão e filho, Renzo incubiu-se sem saber da tarefa de preencher o grande vazio que habitava nossas mentes e almas. Não posso dizer que preencheu de todo porque esse vazio é perene, mas de certo tornou menos profundo.
Renzo falece nesse dia com muito pouco do que foi em sua glória. Estava magro, mal andava e eu quase não podia encontrá-lo quando o encarava nos olhos. Ele somente chorava e latia numa batalha que não conseguia compreender mas que era a batalha travada entre a vida e morte. E vê-lo assim foi também reviver os dias trágicos que precederam a ida da nossa alma gemea. Vê-lo sem andar em busca de asas, é como relembrar o brado que conclamava o alçar vôo.
É claro, muito óbvio, que Deus rege todas as criaturas. Seus designios trouxeram Renzo para nossa família quando haviamos sofrido perda. E agora que estes mesmos designios o carregam para longe, devo compreender que isso só pode significar uma mensagem do próprio Deus. O que acontece é que o tempo passou exatamente como deveria passar e agora tudo deve voltar ao seu eixo.
Com missão cumprida damos adeus a este que fez parte da família por todos esses anos. Com um sentimento de negligência por te-lo as vezes esquecido num canto e até de ter me irritado algumas vezes com este ser que me foi precioso, me despeço com muito pesar e tristeza do maior e mais nobre animal que conheci.

Adeus meu querido amigo, obrigado por tudo.

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