O Menino-Que-Sobrevieu

Tudo estava bem.
Até o momento em que recostei-me no travesseiro na iminencia do sono.
Abri os olhos de súbito e decididamente descobri o que sempre soube que iria acontecer: eu chegara ao fim de Harry Potter.
Puxei os lençois e pulei da cama. São agora 03:11 da madrugada e minha mão formiga com os jorros intermitentes de palavras transformadas em impulsos elétricos.
Senti que precisava dizer às pessoas a minha história com Harry Potter e o seu grande e mágico significado em minha vida. Esta história, alguns podem suspeitar, repousa muito fácil nos braços da minha mãe, aquela que desaparatou e nunca mais foi vista por alguém.

A nossa história tem início em um espaçoso quarto do apartamento localizado na inexplicável Av. Cabo Branco, 3º andar, à tres metros da areia fina que circuda o mar. O quarto seria grande realmente, não fosse o fato de que nele espremia-se um casal e seus cinco filhos em seus colchões colados um ao outro.
Eu sou o garoto magricela, de joelhos ossudos e cabelos despenteados que acabara de acordar com o sol em seu rosto numa radiante manhã de Natal. Quanta alegria percorria o coração deste menino ao constatar os pequenos embrulhos ao pé de seu colchão. Põe os óculos agora tortos visto sua negligência em cuidar dele, e abre o presente que pelo toque reconhecia que certamente era um livro.
O menino rasga com excitação mas cuidadosamente para não acordar os outros. As letras que se deixaram ver por trás do embrulho emitiram um verde luminoso onde se lia "Harry Potter e a Pedra Filosofal". Um lapso crescente de curiosidade e avidez iluminaram os olhos daquele menino que fui um dia. Não poderia imaginar quanto fascínio aquela história exerceria em minha vida.
Aquele foi o presente da minha mãe e foi ela que trouxe Harry Potter a luz do meu conhecimento. Ou em melhores palavras, à luz da minha janela.

A partir de então, todos os anos, foi eu quem embarcou no trem da plataforma nove e meia na estação King's Cross; quem enfrentou dementadores e basiliscoso, conjurou feitiços a arriscou-se pelo mundo cheio de perigos. Foi eu quem carregou o grande fardo da perda de uma mãe.
O último livro com o qual ela me presenteou foi "Harry Potter e o Cálice de Fogo". Harry viu Voldemort renascer sombriamente ao passo que eu vi minha mãe morrer. Ao que parece o manto negrou e pesado da morte recaíra-se mais forte sobre eu e Harry. Juntos nós sofremos a prescpectiva atemorizante do futuro vindouro.
Todas as vezes em que Harry pensava em sua mãe ou sentia uma vontade insuportável de estar junto de seus cabelos e sorriso, o fazia junto com ele. Consternados, sentíamos o peso de ter que seguir em frente a qualquer custo. Harry para salvar a vida de milhares e eu para resgatar a minha própria esflacelada.
Ele sofreu e sofre comigo a indizível dor dos momentos não vividos. Certamente sua mãe não lhe verá casar, formar-se ou ver seus filhos. Certamente ele também não escutará dela o conselho correta nas horas precisas, ou tampouco poderá jogar-se em seu abraço pelo simples impulso de senti-la bem perto e de agarra-la como se agarraria o amor, fosse ele concreto.
O amor...
Ora se não foi ele que salvou a vida de Harry Potter! O amor de sua mãe que o fez imune as forças contrárias e que tão misteriosamente o protegeu durante todos estes anos. Ora, se não fosse o amor que com cuidado colocou as migalhas de pão em meu caminho para que eu pudesse segui-lo por onde devia!
Ambos, eu e Harry, tínhamos varinhas muito poderosas. Ele com a sua de azevinho e pena de fênix, eu com a minha de pinus e cerne de grafite. Harry afastava seus inimigos murmurando feitiços e eu afastava meus demônios aprisionando-os na folha de papel onde os exorcizava.

E hoje 7 anos, os exatos sete anos que se leva para se formar bruxo em Hogwarts,
se passaram desde aquele dia em que o brilho verde dos olhos de Harry Potter encheram os meus.
Agora vejo-me aqui tendo lido o último parágrafo do derradeiro livro da história daquele pequeno e mirrado garotinho que Harry foi e que eu fui também. É impossível deixar de pensar que, igualmente, uma parte da minha história também chega ao seu fim.
Em "Relíquias da morte", Harry encontra-se com sua mãe. A clara descrição com que me diz o que vê é a mesma clara visão que tenho, quando fecho bem os olhos e as lágrimas afloram inconscientes, daquela que é minha mãe também. Ela nos olha, e diz o quanto está orgulhosa. Ela está muito feliz com o modo que superamos os obstáculos, medos e remorsos. Seu sorriso é muito doce e Harry concorda comigo que permaneceria nele, por muito e muito tempo.
Saberia minha mãe o grande tesouro com que me presenteava naquele dia de Natal? Saberia ela que em breve não estaria mais junto a mim, e deu-me aquele primeiro livro para que me acompanhasse e amparasse pelos dias temerosos que se seguiriam?
Não sei. Sei apenas que aprendi muitas lições inestimáveis com Harry Potter.
Mas agora uma nova vida nasce junto aos raios da manhã que vejo colorir o céu na minha janela. Harry venceu Voldemort e eu venci a dor da perda. Nos formamos e um mundo inteiro se descortina em nosso límpido amanhecer. Sinto que ao ler as útlimas palavras deste último livro, fechei a coleção dos últimos sete anos da minha vida. A escola afinal, chegou ao fim. Está em tempo de finalmente ser feliz e começar um novo caminho rumo ao velho desconhecido, onde as mágoas vão se aprofundar no oceano das perdas e não podem mais agitar o mar calmo e sem ondas da minha paz.
Afinal, Harry Potter, não somos mais aquele menino, ainda que continuemos magricelas e com o joelho ossudo de sempre. Nós crescemos e aprendemos a seguir sempre em frente cultivando o amor no íntimo de nossas almas cicatrizadas.

É com um enorme e quase insuportável pesar que me despeço de você, meu caríssimo e grande amigo. Foi uma fantástica jornada esta que compartilhamos e superamos juntos... Eu e o Menino-Que-Sobreviveu.





Adeus, Harry...

Um texto estranho sobre o que uma sandália me fez pensar.

Hoje eu me decepcionei comigo mesmo, novamente.
Hoje na faculdade foi dia da única aula que presta - a de sociologia, porque é a única em que um professor expõe qualquer coisa realmente - e vez ou outra divaguei pra fora da sala, inevitavelmente.
Minha decepção foi dar-me conta que enquanto a professora dizia que no Brasil ainda existem mulheres que morrem por falta de atendimento no trabalho de parto, eu estava pensando na nova e cara sandália que quero comprar.
Outro dia assisti na TV Cultura uma entrevista feita com o médico norte-americano Patch Adams, que inspirou o filme homonimo estrelado por Robie Williams. Ele disse tanta coisa certa e real... Respostas que atingiam o âmago dos grandes problemas humanos e soluções da busca incerta de felicidade. Ai eu pensei que era ele quem eu queria ser... Aquele homem que dissemina o bem e o realiza.
Mas ai eu me olho e não consigo entender porque aquela sandália não desaparece da minha lista de desejos e porque ela aparece vez ou outra na minha mente, vinda da vitrine brilhante e multicor.
Me pergunto por que eu quero aquela sandália. Eu me respondo que eu gostei dela, que é fashion, eu vou me sentir bem usando e na verdade surpreendi-me quando constatei que não é minha intenção fazer exibicionismos ou demonstrações de falsa superioridade por meio dela. Eu não quero que as pessoas vejam a marca dela, eu quero que vejam que tive os olhos para escolher aquela sandália e como ela é bonita. Descobri que simplesmente gostaria de me ver usando-a. Descobri que minha paixão por roupas e afins não é só porque quero que as pessoas me vejam usando determinadas peças, isso não é o mais importante. A grande razão disto é porque eu gosto de me ver usando determinadas roupas e determinadas sandálias. Vi que minha relação com elas é mais do que simplesmente estética. É um sentimento de bem-estar consigo mesmo, de paixão até. Como se cada blusa fosse um amiga que compartilhou momentos ou que promoveu situações. Dou-me conta que algumas delas são capazes um pouco de me definir e outras são meus disfarces que uso nos lugares ao qual não pertenço sob os olhares das pessoas que não entendo. Sinto, quando coloco uma sandália ou quando visto uma calça, que ali estou vestindo sentimentos, traduções e momentos. Vejo que resignifiquei a matéria reles transformando-a em um vestuário da alma. Pois as cores refletem meu estado de espírito e as combinações substanciam meus sentimentos.
Mas mesmo assim me sentiria muito mal se comprasse aquela sandália. Salvo os 10 min. de quase felicidade após passado o cartão de crédito, cairia sobre mim o peso do mundo e de sua maioria. Claro que eu jogaria o mundo de lado, fingindo que ele não está ali e que tudo está muito bem com a minha nova sandália no pé. Isto é típico de mim.
É por isso que hoje eu determinei a mim mesmo que não vou mais comprar peças de marca. Continuarei comprando minhas roupas (e sandálias!) e repugnando o fato de que as mais interessantes e que inevitavelmente são as que mais gosto, custam um valor que compraria muitas cestas básicas. Decido abrir mão de não tê-las (e assim abandonando algumas de minhas camuflagens) ao custo de ajudar outras pessoas, o que é uma forma de me sentir bem ao mesmo tempo.
Aquele par de sandálias me ensinou hoje, no caminho de volta pra casa, que não é nenhum grande mal eu gostar (e até ser um pouco apegado, peço perdão por isso) de estar comprando roupas e sandálias novas, uma vez que elas me fazem bem. O errado é gastar tanto em tão pouco.
Mas por um outro lado mais perto daqui, eu sei que aquela sandália não vai me abandonar. Ela vai me perseguir muito até que eu faça de conta que não despendi nenhum dinheiro com ela ao coloca-la na minha lista para papai noel.
Eu sou fraco eu sei.
Digo estas coisas, mas qualquer dia desses vou estar fazendo o contrário. Vivo querendo fazer de conta que não tem problema e que tudo está muito bem.
O que eu queria era ajudar as pessoas. Mas nem eu consigo me ajudar a ser feliz.
E ainda tem esse "inconveniente" sentimento de culpa sempre que compro.
Ai eu vivo nesse celeuma na minha vida. De fazer o errado figindo ser o certo.
De comprar aquele par de sandálias e fazer de conta que ela não mataria a fome de tantas pessoas.